Entrevista: FREI DAVID RAIMUNDO DOS SANTOS, NANUQUENSE, COORDENA ONG QUE LUTA PELO ACESSO DE NEGROS E POBRES AO ENSINO SUPERIOR
Religioso tem 69 anos e vive em São Paulo: “Acesso à educação não pode ser privilégio de poucos.”
Mineiro do município de
Nanuque, o frei franciscano David Raimundo dos Santos, 69 anos, pouco fala de
si. Prefere colocar em primeiro plano a Educafro, ONG de atuação nacional com
sede em São Paulo, dedicada à inserção de jovens da periferia no ensino
superior. Difícil, no entanto, dissociá-lo da entidade criada nos anos 1980
para sistematizar os cursinhos preparatórios ao vestibular que o Frei ministrava
para as camadas mais pobres da população, em especial os afrodescendentes. “O
acesso à educação não pode ser privilégio de poucos”, afirma.
ONG JÁ COLOCOU 100 MIL JOVENS
NA FACULDADE
A ONG, que já colocou 100 mil
jovens na faculdade e atua na inclusão de minorias no mercado de trabalho com
cursos preparatórios para concursos públicos, é vanguarda em causas jurídicas
pela equidade. Um exemplo é a ação civil pública que resultou na maior
indenização coletiva da história do país e da América Latina para a comunidade
negra no caso do assassinato de Beto Freitas, em novembro de 2020, por
seguranças do Carrefour, em Porto Alegre.
“Nossa ação civil pública
colocou o Deus do empresariado na parede”, disse David à época. Na Paróquia
Santuário de São Francisco, centro de São Paulo, em meio aos preparativos para
uma viagem aos Estados Unidos, ele falou ao site Extra Classe sobre sua
trajetória e o protagonismo da Educafro nas políticas afirmativas de inclusão
racial. O site é fruto do jornal Extra Classe, publicação do Sindicato dos
Professores do Rio Grande do Sul – Sinpro/RS.
Orientado pelos princípios
éticos e técnicos do jornalismo, o extraclasse.org.br tem como objetivo
contribuir para o debate sobre questões importantes da atualidade como meio
ambiente, direitos humanos, cultura, educação, política, economia e, em
especial, movimentos sociais e de trabalhadores.
A entrevista a seguir foi
inteiramente reproduzida do site.
Extra Classe – O senhor começou seu trabalho de inclusão da população
negra com os cursos preparatórios para vestibulares e, em paralelo, na luta
pela política de cotas. No final, qual é o sentimento de ter ajudado cerca de
100 mil jovens a atingir uma formação universitária?
Frei David Santos – Como sabemos, o Brasil, infelizmente, é perpetuador
de práticas que reforçam o racismo estrutural. Estas, por sua vez, interferem
no acesso da nossa comunidade afro-brasileira a cargos de poder, impactando na
latente desigualdade sofrida pela maior parte da nossa população. Deveria ser
de total dever dos órgãos do Estado a responsabilidade de abrir o coração e
promover políticas que fornecessem soluções para tais problemas estruturais.
A missão inicial da Educafro
Brasil tinha por elemento central a inclusão de nossos irmãos afro-brasileiros
no acesso ao ensino superior para que pudéssemos iniciar o processo de
erradicação dessas desigualdades. Ouso dizer que nós, enquanto entidade,
vibramos com cada vitória alcançada pelo nosso povo.
Mas insisto na luta para que o
Brasil compreenda que não só a inserção é necessária, mas também que conservem
os frutos dos movimentos que trabalharam até aqui em prol de eliminar essas
desigualdades. E ainda que projetem políticas que garantam não só a permanência
nesses espaços, mas também promovam outros avanços que reparem os erros da
história e garantam oportunidades concretas para nossos irmãos
afro-brasileiros.
EC – Como foi o seu caminho?
Frei David – Quando muito tempo atrás eu fiz uma palestra para a
juventude negra, na Baixada Fluminense, com mais de 100 jovens, eu pedi:
levante a mão quem de vocês vai fazer faculdade. Eu vinha de duas faculdades e,
na minha cabeça, fazer faculdade era o normal de todo ser humano.
Não imaginava que era possível
uma pessoa jovem, seja ela pobre ou rica, não ter o sonho de fazer faculdade.
Mas, só dois jovens levantaram o braço. Ali, caiu a ficha. E eu entendi qual
era a minha vocação. Criar o pré-vestibular comunitário para jovens pobres
poderem se preparar para disputar o espaço com os ricos e fazerem a sua
faculdade. A Educafro, que há mais de 40 anos ajuda jovens pobres, em especial
negros, a entrarem em universidades em todo o país não vai abrir mão dessa
missão.
EC – Hoje, a Educafro oferece cursos preparatórios para concursos do
Ministério Público Federal (MPF), da Defensoria, de cartórios, de magistratura,
entre outros. Como se deu essa evolução?
Frei David – Para responder a essa pergunta, vou lembrar uma
situação vivenciada pelas nossas irmãs e irmãos advogados negros, em novembro
de 2022, em um concurso com cotas raciais que visava preencher vagas de
administração de cartórios.
A Educafro questionou
judicialmente uma norma que teria sido discriminatória contra os candidatos
pobres e negros. Aqueles que não poderiam pagar integralmente a taxa de R$
199,00 cobrada para inscrição tiveram menos de 48 horas para se inscrever. Os
que possuíam recursos para tal, no entanto, contaram com longos 30 dias para
efetuar o mesmo procedimento.
O juiz do caso, em caráter
liminar, determinou que as inscrições fossem reabertas de maneira que aqueles
considerados hipossuficientes tivessem 10 dias corridos para preencher o
formulário de participação no concurso e solicitar a isenção, apresentando a
documentação que comprovasse a condição financeira prejudicada.
Cenas como essa evidenciam a
importância dos preparatórios para diversos concursos, atendendo às pessoas já
assistidas da Educafro para o preenchimento das cotas na graduação e que agora
precisam de reforço, via curso, para ingressar em vagas de alta demanda em que
não se têm negros. A Educafro vai investir muito em atitudes que ampliem o acesso
do negro em todos os concursos nacionais, estaduais e municipais, garantindo
esse direito.
EC – O senhor já disse uma vez que o povo negro, com seu crescente ingresso nas universidades e nos altos postos do mercado de trabalho, através das cotas nos concursos públicos, tem um grande papel na construção do novo Brasil que estaria sendo desenhado. Que Brasil é esse?
Frei David – Em uma sociedade estruturalmente racista, a Educafro
busca novos mecanismos para combater essa violência direcionada à população
negra.
Os preparatórios para
concursos do Ministério Público Federal, Defensoria Pública e Cartórios são
mecanismos de capacitação para a população afro-brasileira alcançar vagas de
alta demanda no cenário brasileiro para modificar a conjuntura de exclusão
social existente.
Acredito que essas ferramentas
são formas de modificar a estrutura de um Brasil excludente. Esse Brasil
precisa ser fundamentalmente um Estado que reformule suas leis em função de
garantir não a igualdade e, sim, a equidade. Assim acontecendo, estaremos
mexendo com a economia da nação e colocando-a com a responsabilidade de
empoderar o povo afro-brasileiro.
EC – A população negra foi a que menos se inscreveu no último Enem, em
especial devido às dificuldades com o estudo remoto na pandemia.
Frei David – Não podemos esquecer que, nas provas do Enem de todos
os outros anos, grande parte do povo afro-brasileiro, por ser obrigado a migrar
do ensino médio para o trabalho, não se inscreveu na porcentagem que deveria
para disputar esta ferramenta de empoderamento que é a educação. Mas,
realmente, esse contexto avassalador que nos trouxe uma pandemia mundial veio
para refazer muitas formas de interações humanas e sociais. Tivemos que
aprender a lidar com o novo normal.
EC – Como se deu?
Frei David – A Educafro, que
já estava passando por um momento de refundação, teve que se adequar a essa
situação para que nossa comunidade não ficasse para trás mais uma vez quando se
fala em acesso e inclusão.
É extremamente necessário que
haja uma empatia de todas as instâncias, pois a população pobre e negra, além
de ser a que mais sofre as consequências da covid-19, também é a mais afetada
quando falamos em novos moldes de ensino.
Por exemplo, a mobilização e
cobrança de organizações como a Educafro, que solicitou judicialmente a
reaplicação das provas do Enem 2021, foi uma conquista importante para que
nosso povo tivesse a oportunidade de fazer a prova e adentrar o mundo
universitário.
EC – Como a Educafro auxiliou essas minorias?
Frei David – Oferecendo cursos preparatórios on-line, empréstimo de
computadores e notebooks e o fornecimento de chips com internet para que as
pessoas pobres tivessem a oportunidade de estudar e se preparar. Foram ações
importantes, mas a nossa luta é para que essas ações e iniciativas sejam de
responsabilidade do Estado, a partir de políticas que correspondam a esses
problemas, fornecendo acesso e educação de qualidade.
EC – O senhor afirma que há resistências às cotas raciais e que as
conquistas não têm visibilidade na imprensa. Quais são esses avanços?
Frei David – A Educafro não abre mão do acesso ao sistema de cotas,
como política pública nacional, não apenas nas universidades, mas em todos os
concursos públicos de nível estadual, municipal e federal.
A Câmara Federal e o Senado já
votaram a lei. Além disso, alguns partidos de direita entraram no Supremo
Tribunal Federal (STF) questionando a constitucionalidade das cotas e foram
derrotados por 11 a zero. As ações afirmativas são um dos direitos mais sólidos
que a comunidade negra conquistou e a Lei de cotas amplia isso em todas as
áreas possíveis.
Exemplo: por três anos,
lutamos no Conselho Nacional de Justiça contra os presidentes de 27 Tribunais
de Justiça no Brasil que não queriam adotar cotas nos concursos públicos para
tabelião/cartórios. No início de 2021, conquistamos, por unanimidade, a
obrigação de todos os tribunais adotarem cotas.
A nossa tristeza é que a grande imprensa não está divulgando esta vitória, e, assim, poucos advogados negros e negras estão se preparando para esse que é considerado o concurso mais rentável do cenário nacional.
EC – Há quem o acuse de fazer muito barulho. Como reage?
Frei David – Estamos “fazendo barulho” para sinalizar que as cotas
raciais são mecanismos essencialmente importantes para pensar em pluralizar as
esferas de poder. No início dos anos 2000, quando as ações afirmativas
começaram a ser pensadas no Brasil, fizemos barulho potente em prol da
população negra e presença constante nos debates e na imprensa.
As primeiras experiências de
cotas raciais começaram a ser implantadas na Universidade do Estado do Rio de
Janeiro (UERJ) e Universidade do Estado da Bahia (Uneb), em 2003, e na
Universidade de Brasília (UnB), em 2004. Portanto, o “barulho” somado à nossa
organização foi e continua sendo fundamental para as nossas conquistas.
EC – Enquanto esteve à frente da Fundação Palmares, Sérgio Camargo
impôs retrocessos e disseminou a ideia de vitimismo do povo negro. Como o
senhor avalia condutas como essa?
Frei David – No mundo inteiro, a direita acordou, não é diferente
do Brasil. Então esse rapaz, que era presidente da Fundação Palmares e que fez
grandes estragos para o povo negro, fez isso de maneira calculada. Sabe que os
apoiadores financeiros da campanha dele e que vão votar nele são todos de
direita e, também, são contra o direito da comunidade afro-brasileira em ter
acesso às oportunidades.
Portanto, ele está jogando de
maneira prevista, uma vez que só quer voto da direita por não estar disputando
o voto da esquerda. Isso, bem como o lançamento da campanha em São Paulo, é uma
maneira estratégica baseada em dados estatísticos. A direita sabe que o público
que tende a votar nele está organizado de forma mais concentrada nesse
território.
Bolsonaro diz ser cristão, mas 99% das suas atitudes são anticristãs. (...) Jesus não defendeu a tese da matança, de roubar terras dos indígenas...”
EC – O senhor seguiu a vida religiosa porque queria ajudar os pobres sem ser classificado pela ditadura como comunista. Mas hoje, nem o Papa escapa desse rótulo quando defende os pobres…
Frei David – Não imaginava que seria possível uma pessoa jovem
negra, pobre não sonhar em cursar uma universidade, mas numa palestra que fiz
na Baixada Fluminense, compreendi que a educação no Brasil é privilégio.
Nesse sentido, pensar a
educação para todos é um direito inalienável, que não pode ser classificado
como pensamento comunista ou socialista, mas sim como norma fundamental da
Constituição Federal para todos, sem distinção de qualquer natureza. Essas
garantias são bases também do modo de vida franciscano.
EC – O atual presidente da República sinalizou que a próxima eleição
será disputada entre “o bem e o mal”, ou seja, entre “cristãos” e “comunistas”.
Como vê simplificações como essa?
Frei David – É uma das maiores propostas de falsidade ideológica;
ele (Bolsonaro) diz ser cristão, mas 99% das suas atitudes são anticristãs.
Jesus Cristo estaria e está extremamente tremendo de dor e sofrimento ao ver
pessoas usando o nome dele em vão para defender teses que ele não defendia.
Jesus não defendeu a tese da
matança, de roubar terras dos indígenas, de tirar a bolsa-moradia e alimentação
dos quilombolas e indígenas que entraram nas universidades públicas pelas
cotas.
Então, grande parte das propostas
do governo Bolsonaro, como atacar a natureza da Floresta Amazônica, estragar o
território e ampliar garimpos, explorando minerais, tudo isso são atitudes que
ferem profundamente a essência do cristianismo, que é respeitar a natureza, ter
bondade, partilhar e dar oportunidade aos mais fracos. Eu acredito que as
propostas dele, da direita, não formam um ser humano consciente e não
correspondem aos valores cristãos.
EC – Qual é o objetivo da sua viagem aos Estados Unidos?
Frei David – Está inserida em um programa maior de solidariedade
entre o negro brasileiro e o negro norte-americano, voltado para as ações
jurídicas. Queremos, então, partilhar as várias inovações e teses jurídicas que
a Educafro abriu.
Teses que nem nos Estados
Unidos, nem na América Latina foram trabalhadas como nós trabalhamos. São teses
que estão operando vitórias para a população afro-brasileira. Queremos discutir
e ampliar com os norte-americanos essas possibilidades.
Também abrimos no Brasil ações
contra empresas transnacionais e estamos construindo um diálogo com o objetivo
de acelerar a equidade, a diversidade, o empoderamento e a oportunidade para a
população afro-brasileira.
EC – Que teses?
Frei David – A morte de um só negro, vítima de racismo, não
constitui um dano jurídico apenas para aqueles que dele dependiam, mas um abalo
jurídico para toda a sociedade.
Foi assim que construímos um
acordo histórico com o Carrefour – a ação civil pública que resultou na maior
indenização coletiva da história do país e da América Latina para a comunidade
negra em decorrência do assassinato de Beto Freitas, em novembro de 2020, por
seguranças do Carrefour, em Porto Alegre.
O MPF homologou um Termo de
Ajuste de Conduta com a empresa no valor de R$ 15 milhões. Uma empresa pode ser
responsabilizada por instituir um ambiente de trabalho racista, tal como
afirmamos contra o Atakarejo, supermercado da Bahia que entregou para grupos
criminosos, milicianos, em mais de uma ocasião, jovens negros acusados de
tentar praticar furtos naquele estabelecimento comercial.
Outra questão central para
nós, a responsabilização civil por danos coletivos decorrentes do racismo é
imprescritível. Estamos nos preparando para apresentar essa tese pela primeira
vez perante o Poder Judiciário.
EC – Teve uma ação contra a Ável Investimentos, credenciada da XP, por
apresentar uma foto de seus funcionários, em sua maioria homens brancos, poucas
mulheres e nenhuma pessoa negra.
Frei David – Sim. A livre
iniciativa não dá aos empregadores o direito de fazer contratações excludentes,
que não levem em conta a diversidade brasileira. Foi o que afirmamos nos
processos contra a Ável e a XP. A Ável, após uma primeira audiência de
conciliação sem acordo, mudou de postura e apresentou ao processo um plano de
diversidade para 2022.
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